viernes, 23 de mayo de 2014

Peço perdão por ter vivido por cima dos meus meios

Peço perdão por ter vivido por cima dos meus meios, alegremente, superficialmente, sem parar a pensar por um momento que o meu temerário comportamento contribuiria, anos mais tarde, à hecatombe económica e social deste país.

Peço perdão por ter estudado uma carreira, por ter-me atrevido sequer a fantasiar com que, no futuro, poderia ter um trabalho melhor que o do meu pai, menino da Pós-guerra e mecânico sem vocação na já fenecida PSA. Peço perdão por ter esbanjado centos de euros em matrículas, livros, canetas e folhas. E por ter malgastado os cinco euros que me dava a minha mãe para o sanduíche, que deveria ter sido sempre de mortadela e nunca, nunca (Deus, tenho vergonha) de presunto.

Peço perdão por ter pretendido trabalhar em algo vagamente relacionado com os meus estudos ou, ao menos, um pouco qualificado para que cinco anos a base de sanduíches de mortadela e algum de presunto com queijo (aperto de novo ao cilício) tivessem valido a pena. Quantos meios de viver de acordo com os meus meios desaproveitei! Teleoperador! Pesquisador! Repartidor de publicidade de academias de inglês! Meter cartas em envelopes! Tive, céus, o meu próprio porvir nas minhas mãos e desprezei-o num arroubo justificável de orgulho, a pensar que estas nobres atividades eram trabalhos temporários! Peço perdão (datilografo agora de joelhos, a olhar para a parede) por crer que merecia algo melhor.

Peço perdão por ter coberto o meu corpo com roupa. Perdoem-me, rogo-lhes, por cada euro investido na H&M. Por que não vesti ponchos? Um poncho é elegante, digno e totalmente compatível com os meus meios. Pegas um lençol, fazes-lhe um buraco para a cabeça e já está. Poderia ter tingido dalgum cor o dos domingos, até a ralé tem que permitir-se de vez em quando a coqueteria. Mas… camisetas? Jeans? Casacos? E (oh, Deus, apieda-te de mim) um sobretudo cada dois invernos? Mas quem achei que era? Um marquês? Um jogador de futebol? Um comentarista da imprensa rosa? Afundo agora o cúter no meu antebraço e contemplo o correr do sangue, porque qualquer sofrimento é pouco para redimir tanta baixeza.

Peço perdão, peço perdão e peço perdão. E aceitarei qualquer castigo que queiram, nestes dias de justiça implacável, propinar-me os mercados. Peço perdão por ter tido um computador de gama média, por ter pedido aquela taça de importação no casamento do meu cunhado, por ter convidado a cear em VIP à menina da que gostava (até tenho que merecer o 2x1 das Noites Loucas) e por ter pedido um empréstimo para estudar uma pós-graduação, por ter comprado aquele colchão viscoelástico e não o das molas de ferro, que é o que corresponde aos da minha casta; peço perdão por ter vivido, de vez em quando, moderadamente despreocupado, por não ter pensado, sem descanso, do dia à noite, no porvir; por ter lido poesia, e não livros de economia; por ter amado, rido; e por ter padecido a terrível enfermidade da ilusão.

E é que, agora que penso nisso, agora que vejo os noticiários e leio as últimas análises da recessão e as consequências que os esbanjadores como eu vamos, com toda justiça, padecer, dou-me conta que não vivi por cima dos meus meios, senão na atmosfera, na estratosfera, no fodido salto ao hiperespaço dos meus meios…

Não tinha nenhum!

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